Durante décadas, convenceram-nos que os homens traem muito mais do que as mulheres. O discurso prevaleceu até aos dias de hoje, mas a realidade dos números e da experiência dos terapeutas já não o confirma. Afinal, porque traímos?
Há quem o faça para vencer a rotina de uma relação desgastada pelos anos. Há quem caia na vertigem de uma nova paixão, tão magnetizante que é impossível evitá-la. Há quem sucumba ao desejo de provar o fruto proibido. Ou, simplesmente, quem esteja no lugar errado, com a pessoa errada (ou será a certa?), à hora errada. Nem sequer é novidade. Os homens, não é segrego, sempre traíram. As mulheres também, embora de uma forma muito mais "clandestina". Mas os estudos e a experiência dos especialistas põem a nu uma nova realidade: elas traem (quase) tanto como eles.
A mudança mais significativa nos padrões de infidelidade nos últimos anos está no número de mulheres que cometem adultério.
Um estudo publicado em Junho no jornal Archives of Sexual Behavior confirma a tendência já revelada por investigações recentes: contrariamente à crença popular, é ténue a diferença nas taxas de infidelidade admitidas por homens (23%) e mulheres (19%).
Os números deitam por terra os mitos veiculados sobre as diferenças de género na indifelidade, mas são apenas a ponta do icebergue. A falta de consenso sobre o que constitui a traição (o caso recente do congressista americano Anthony Weiner, caído em desgraça pelo envio de imagens sugestivas numa rede social, veio reacender o debate) e, sobretudo, a carga negativa associada ao conceito, faz com que estes comportamentos sejam ocultados muitas vezes, viciando as estatísticas.
"Alguns estudos sugerem que 45 a 55% das mulheres casadas têm relacionamentos extraconjugais. Nos homens, os números rondam os 50 a 60%. A diferença não é muito significativa", revela a psicóloga Cláudia Morais. E, ainda que seja difícil saber ao certo se se trai mais hoje, o psiquiatra Júlio Machado Vaz admite que a conclusão é "provavelmente verdadeira" no caso das mulheres. "Pelo menos, assumem-no mais na realidade terapêutica", afirma.
Certo, garantem os dois especialistas, é que, agora como ao longo dos tempos, elas são mais competentes em encobrir as incursões fora da relação. A justificação, adianta Morais, é simples. As mulheres são, no geral, "muito mais atentas aos detalhes do que os homens", o que explica também que tenham um faro mais apurado para detectar as "facadinhas" deles. "É como se tivessem um 'sismógrafo' que lhes permite perceber alterações de comportamento que possam significar uma potencial infidelidade".
Mudam-se os tempos...
Mas, afinal, porque parecem as mulheres trair mais hoje? Por um lado, a emancipação feminina "favoreceu o alargamento da rede social, criando maior oportunidade para os relacionamentos extraconjugais", lembra Morais. Mas as oportunidades não explicam tudo, "nem sequer a maior parte" do problema, defende Machado Vaz. O que acontece é que elas hoje "recusam muito mais o duplo-padrão sexual, que transforma os comportamentos 'naturais' nos homens em 'imorais' nas mulheres", defende o sexólogo. Libertadas pela revolução sexual dos anos 60, as mulheres reivindicam o direito à realização pessoal e à satisfação íntima. São mais livres, mais activas, mais honestas sobre a sua sexualidade.
Será, talvez, o triunfo da era do prazer. O sexo pelo sexo, por exemplo, deixou de ser um comportamento quase exclusivo dos homens. C.M., uma empresária de 33 anos, confirma-o. Loira vistosa e confiante, fala sem pudor e sem culpa da primeira aventura extraconjugal, há seis anos, e das muitas que se seguiram. Era mais uma viagem de negócios como tantas outras. Mas, daquela vez, a travessia do Atlântico revelou-se mais interessante do que o habitual. No avião, pediu à hospedeira para mudar de lugar e sentar-se ao lado "de um amigo", um homem "alto, moreno, com olhos da cor do mar" que captara a sua atenção durante o check-in. A ligação foi instantânea. "Conversámos a viagem toda até São Paulo. No final, trocámos e-mail e números de telemóvel." Três dias depois, ele foi ter com ela ao sul do Brasil. Passaram "a tarde e a noite" juntos. "Estava longe de tudo e não resisti", conta.
Tinha-se casado dois anos antes, pela segunda vez (a primeira fora aos 17). "Mudei muito depois do divórcio. Sei o que quero e do que preciso. Já fui infiel várias vezes, em especial quando viajo, mas também em Portugal", confessa. Para a empresária, as pessoas fazem "um bicho de sete cabeças" quando se fala em traição. "Envolver-me com outra pessoa é mais uma questão de desejo e adrenalina. É algo que não vivemos no dia a dia, muito menos quando temos uma relação de oito anos. Nunca fiquei com a consciência pesada. Se estou bem e realizada, consigo fazer mais feliz quem vive comigo."
A tentação não é de agora; existe desde que Eva trincou a maçã. O que mudou foi sobretudo a forma como elas (não) lhe resistem. Mas, ainda que a infidelidade se tenha democratizado, persistem alguns estereótipos de género nas suas motivações. Segundo o estudo publicado no Archives of Sexual Behavior, a excitação sexual desempenha um papel maior nos homens, mas nas mulheres domina o descontentamento com a relação e a pouca compatibilidade sexual com os companheiros. "Os homens continuam a ser capazes de clivar com mais facilidade sexo e amor, (de darem) aquela 'facadinha' que julgam em nada influenciar uma relação estável", afirma Machado Vaz. Esta visão compartimentada da vida sexual e afectiva é menos habitual nas mulheres, revela o sexólogo. "Para elas, a vertente psicológica, o 'trair na cabeça', não é menos valorizado. Talvez por isso, em regra, levem mais tempo a tomar a decisão de trair."
Para R.M., 28 anos, ser infiel era algo impensável. Em Abril, poucos dias antes de ficar noiva do homem com quem namorava há quatro anos, emigrado alguns meses antes em França, conheceu João durante uma saída com uma amiga. A combustão esteve longe de ser instantânea, mas a vertigem foi-se acentuando durante a noite e nos encontros seguintes. "Ao princípio não me chamou a atenção, não havia qualquer química. Mas, com o tempo, fomo-nos tornando mais próximos e começámos a provocar-nos de forma subtil mas sedutora. Um dia, deixei de resistir...", confessa.
A decisão foi bem pensada antes de ser concretizada. "Há quem diga que só se arrepende do que não faz, mas penso de forma oposta. Só me arrependo do que faço. Por isso, ponderei muito e não me arrependo." Nem mesmo quando, poucos dias depois de se envolver com o João, o namorado a surpreendeu com um pedido de casamento durante uma ida à praia, "com direito a joelho na areia e anel". Apesar do affair, o sim saiu sem hesitação. "Dizem que quem ama não trai. Não concordo. Ninguém trai porque é fácil. É sempre muito difícil, mesmo que também possa ser muito bom. A experiência foi arrebatadora e abalou um pouco a minha relação, mas eu sempre soube quem queria para o meu futuro e decidi não pôr isso em causa", afirma.
É natureza, estúpido
A pergunta impõe-se: o que leva uma mulher, a poucos meses de se casar, a envolver-se com outro homem? R.M. não procura a desculpa fácil. "Amo o meu noivo, mas penso de uma forma diferente desde que ele foi para França. Uma pessoa quando ama convive, abraça, está presente... Nem sempre é fácil lidar com a distância, mas resume-se tudo ao facto de estarmos carentes. Sou mãe (tem um filho com 11 anos), tenho namorado, mas acima de tudo sou mulher. Nunca ninguém me tinha feito sentir assim ao ponto de trair só pelo desejo", garante.
Traímos, antes de mais, porque podemos. Em muitas situações, trair é fácil e o risco reduzido. Com mais frequência do que possamos admitir, nem sequer tem consequências. Por isso traímos. É difícil resistir à tentação, sobretudo quando ela está tão perto. A oportunidade é a pior inimiga da fidelidade.
Mas oportunidade e desejo não explicam tudo. A complexa equação da infidelidade não tem solução fácil nem uma explicação universal que responda a todas as situações. Cada caso é um caso e a receita de um adultério inclui, muitas vezes, ingredientes complexos. "É só escolher: paixão verdadeira por outra pessoa; paixão pelo estado de paixão; sexo puro e duro; ajuste de contas; como anti-depressivo ou poção de rejuvenescimento; em 'protesto' contra uma relação enferrujada pela rotina, etc.", enumera Júlio Machado Vaz. E nem sempre o adultério é intencional, refere Mira Kirshenbaum, autora de When Good People Have Affairs: Inside The Hearts & Minds of People in Two Relationships ("Quando as Boas Pessoas Traem: Dentro dos Corações e das Mentes das Pessoas em Duas Relações", numa tradução literal), que elaborou 17 razões que levam as pessoas a trair, entre os quais o acaso. "Por vezes, as pessoas não estão à procura. Basta estar no sítio errado, na altura errada", refere.
Traímos também porque é da nossa natureza, admitirão muitos homens (embora nenhum dos contactados tenha aceitado abrir a sua 'caixa de Pandora' para este trabalho). É a velha desculpa biológica, que a ciência tenta há muito validar. A descoberta recente de um "gene de infidelidade" parece confirmar a hipótese: segundo um estudo de uma universidade nova-iorquina, as pessoas com a mutação genética DRD4 (presente num quarto da população) têm uma maior propensão para trair. A explicação está na forma como a mutação influencia o processamento da dopamina, um neurotransmissor que actua no cérebro influenciando, entre outras, as sensações de prazer e motivação. "É como se, durante a traição, as pessoas recebessem uma descarga de prazer maior", explica Justin Garcia, coordenador do estudo.
A biologia ajuda também a explicar porque é que, no geral, homens e mulheres ainda traem por razões distintas: eles mais por motivações sexuais, elas mais por razões emocionais. Segundo alguns investigadores, as hormonas e os neurotransmissores desempenham um papel na infidelidade e ajudam a perceber as diferenças de género por trás da traição. Neles, faz-se sentir o efeito da testosterona, que eleva a libido - homens com maior propensão para o adultério revelam frequentemente níveis mais elevados desta hormona, associada à agressividade e à competitividade. Nelas, sente-se mais o efeito da ocitocina, a hormona do amor, que, entre outras funções, é responsável pelos sentimentos de apego e vinculação afectiva -, o que explica o facto de as mulheres serem, em regra, mais propensas a estabelecer e manter os vínculos dos relacionamentos.
Para Júlio Machado Vaz, há ainda factores circunstanciais que podem facilitar a infidelidade, como a Internet, que veio não só tornar a traição acessível à distância de um clique como redefinir o próprio conceito. "As novas tecnologias tornaram apaixonante a discussão sobre o que é trair. Já foram decretados divórcios por infidelidade que nunca passou do teclado do computador pessoal...", sublinda o psiquiatra.
O potencial da Internet
A proliferação de redes sociais como o Facebook, salas de chat e sites que promovem encontros, incluindo entre casados, é terreno fértil para reencontrar paixões antigas e fazer novas amizades. O que muitas vezes começa como uma forma de escape, para fintar a rotina da relação, acaba por conduzir à concretização física da traição e arruinar muitos casamentos. Segundo Ana Carvalheira, que conduziu um dos maiores estudos realizados em Portugal sobre relações pessoais e comportamentos sexuais na Internet, mais de metade das pessoas (20% das quais eram casadas ou viviam em união de facto) que participaram em conversas erótico-pornográficas na Internet (vulgo cibersexo) concretizaram o encontro sexual. E desengane-se quem pensa que o fenómeno é coisa de homens. As diferenças entre sexos são quase inexistentes.
"A Internet reúne um conjunto de características que podem ser favorecedoras da infidelidade, nomeadamente o anonimato e a possibilidade de encontrar pessoas com os mesmos gostos, preferências e interesses", refere Carvalheira, que acrescenta ainda o facto de a Web permitir uma forte e rápida percepção da intimidade. "A pessoa sente que é íntima de outro muito rapidamente. Tudo isto favorece o estabelecimento de relações eróticas e amorosas." A psicóloga sublinha o "potencial erótico" da comunicação escrita na Web, que favorece os que escrevem melhor. "Permite ler nas linhas e nas entrelinhas. Para além disso, a outra pessoa é facilmente idealizada. Esse exercício pode ser estimulante à medida que se progride no jogo de sedução", refere.
Será, talvez, um quadro pessimista para os românticos do amor incondicional, eterno e monogâmico. Mas a realidade é o que é: a infidelidade existe. Os estudos não permitem comprovar se está ou não a crescer, mas é certamente hoje muito mais descoberta do que há alguns anos (os mesmos meios tecnológicos que a facilitam acabam, na maior parte dos casos, por a denunciar). Talvez amor e desejo sejam, de facto, coisas diferentes. Talvez, como (se) defendem muitos, a fidelidade emocional seja diferente da fidelidade sexual. Talvez um dia rejeitemos a monogamia, admitindo que ela mais não é que imposição cultural. Talvez abracemos o nosso lado animal e deixemos de resistir aos nossos impulsos. E talvez então homens e mulheres passem a aceitar as regras do jogo, sem se deixar enredar na teia do ciúme. Será então o definitivo triunfo da sociedade da liberdade, do livre arbítrio e do prazer?
Nélson Marques in Revista Única, Expresso
Há quem o faça para vencer a rotina de uma relação desgastada pelos anos. Há quem caia na vertigem de uma nova paixão, tão magnetizante que é impossível evitá-la. Há quem sucumba ao desejo de provar o fruto proibido. Ou, simplesmente, quem esteja no lugar errado, com a pessoa errada (ou será a certa?), à hora errada. Nem sequer é novidade. Os homens, não é segrego, sempre traíram. As mulheres também, embora de uma forma muito mais "clandestina". Mas os estudos e a experiência dos especialistas põem a nu uma nova realidade: elas traem (quase) tanto como eles.
A mudança mais significativa nos padrões de infidelidade nos últimos anos está no número de mulheres que cometem adultério.
Um estudo publicado em Junho no jornal Archives of Sexual Behavior confirma a tendência já revelada por investigações recentes: contrariamente à crença popular, é ténue a diferença nas taxas de infidelidade admitidas por homens (23%) e mulheres (19%).
Os números deitam por terra os mitos veiculados sobre as diferenças de género na indifelidade, mas são apenas a ponta do icebergue. A falta de consenso sobre o que constitui a traição (o caso recente do congressista americano Anthony Weiner, caído em desgraça pelo envio de imagens sugestivas numa rede social, veio reacender o debate) e, sobretudo, a carga negativa associada ao conceito, faz com que estes comportamentos sejam ocultados muitas vezes, viciando as estatísticas.
"Alguns estudos sugerem que 45 a 55% das mulheres casadas têm relacionamentos extraconjugais. Nos homens, os números rondam os 50 a 60%. A diferença não é muito significativa", revela a psicóloga Cláudia Morais. E, ainda que seja difícil saber ao certo se se trai mais hoje, o psiquiatra Júlio Machado Vaz admite que a conclusão é "provavelmente verdadeira" no caso das mulheres. "Pelo menos, assumem-no mais na realidade terapêutica", afirma.
Certo, garantem os dois especialistas, é que, agora como ao longo dos tempos, elas são mais competentes em encobrir as incursões fora da relação. A justificação, adianta Morais, é simples. As mulheres são, no geral, "muito mais atentas aos detalhes do que os homens", o que explica também que tenham um faro mais apurado para detectar as "facadinhas" deles. "É como se tivessem um 'sismógrafo' que lhes permite perceber alterações de comportamento que possam significar uma potencial infidelidade".
Mudam-se os tempos...
Mas, afinal, porque parecem as mulheres trair mais hoje? Por um lado, a emancipação feminina "favoreceu o alargamento da rede social, criando maior oportunidade para os relacionamentos extraconjugais", lembra Morais. Mas as oportunidades não explicam tudo, "nem sequer a maior parte" do problema, defende Machado Vaz. O que acontece é que elas hoje "recusam muito mais o duplo-padrão sexual, que transforma os comportamentos 'naturais' nos homens em 'imorais' nas mulheres", defende o sexólogo. Libertadas pela revolução sexual dos anos 60, as mulheres reivindicam o direito à realização pessoal e à satisfação íntima. São mais livres, mais activas, mais honestas sobre a sua sexualidade.
Será, talvez, o triunfo da era do prazer. O sexo pelo sexo, por exemplo, deixou de ser um comportamento quase exclusivo dos homens. C.M., uma empresária de 33 anos, confirma-o. Loira vistosa e confiante, fala sem pudor e sem culpa da primeira aventura extraconjugal, há seis anos, e das muitas que se seguiram. Era mais uma viagem de negócios como tantas outras. Mas, daquela vez, a travessia do Atlântico revelou-se mais interessante do que o habitual. No avião, pediu à hospedeira para mudar de lugar e sentar-se ao lado "de um amigo", um homem "alto, moreno, com olhos da cor do mar" que captara a sua atenção durante o check-in. A ligação foi instantânea. "Conversámos a viagem toda até São Paulo. No final, trocámos e-mail e números de telemóvel." Três dias depois, ele foi ter com ela ao sul do Brasil. Passaram "a tarde e a noite" juntos. "Estava longe de tudo e não resisti", conta.
Tinha-se casado dois anos antes, pela segunda vez (a primeira fora aos 17). "Mudei muito depois do divórcio. Sei o que quero e do que preciso. Já fui infiel várias vezes, em especial quando viajo, mas também em Portugal", confessa. Para a empresária, as pessoas fazem "um bicho de sete cabeças" quando se fala em traição. "Envolver-me com outra pessoa é mais uma questão de desejo e adrenalina. É algo que não vivemos no dia a dia, muito menos quando temos uma relação de oito anos. Nunca fiquei com a consciência pesada. Se estou bem e realizada, consigo fazer mais feliz quem vive comigo."
A tentação não é de agora; existe desde que Eva trincou a maçã. O que mudou foi sobretudo a forma como elas (não) lhe resistem. Mas, ainda que a infidelidade se tenha democratizado, persistem alguns estereótipos de género nas suas motivações. Segundo o estudo publicado no Archives of Sexual Behavior, a excitação sexual desempenha um papel maior nos homens, mas nas mulheres domina o descontentamento com a relação e a pouca compatibilidade sexual com os companheiros. "Os homens continuam a ser capazes de clivar com mais facilidade sexo e amor, (de darem) aquela 'facadinha' que julgam em nada influenciar uma relação estável", afirma Machado Vaz. Esta visão compartimentada da vida sexual e afectiva é menos habitual nas mulheres, revela o sexólogo. "Para elas, a vertente psicológica, o 'trair na cabeça', não é menos valorizado. Talvez por isso, em regra, levem mais tempo a tomar a decisão de trair."
Para R.M., 28 anos, ser infiel era algo impensável. Em Abril, poucos dias antes de ficar noiva do homem com quem namorava há quatro anos, emigrado alguns meses antes em França, conheceu João durante uma saída com uma amiga. A combustão esteve longe de ser instantânea, mas a vertigem foi-se acentuando durante a noite e nos encontros seguintes. "Ao princípio não me chamou a atenção, não havia qualquer química. Mas, com o tempo, fomo-nos tornando mais próximos e começámos a provocar-nos de forma subtil mas sedutora. Um dia, deixei de resistir...", confessa.
A decisão foi bem pensada antes de ser concretizada. "Há quem diga que só se arrepende do que não faz, mas penso de forma oposta. Só me arrependo do que faço. Por isso, ponderei muito e não me arrependo." Nem mesmo quando, poucos dias depois de se envolver com o João, o namorado a surpreendeu com um pedido de casamento durante uma ida à praia, "com direito a joelho na areia e anel". Apesar do affair, o sim saiu sem hesitação. "Dizem que quem ama não trai. Não concordo. Ninguém trai porque é fácil. É sempre muito difícil, mesmo que também possa ser muito bom. A experiência foi arrebatadora e abalou um pouco a minha relação, mas eu sempre soube quem queria para o meu futuro e decidi não pôr isso em causa", afirma.
É natureza, estúpido
A pergunta impõe-se: o que leva uma mulher, a poucos meses de se casar, a envolver-se com outro homem? R.M. não procura a desculpa fácil. "Amo o meu noivo, mas penso de uma forma diferente desde que ele foi para França. Uma pessoa quando ama convive, abraça, está presente... Nem sempre é fácil lidar com a distância, mas resume-se tudo ao facto de estarmos carentes. Sou mãe (tem um filho com 11 anos), tenho namorado, mas acima de tudo sou mulher. Nunca ninguém me tinha feito sentir assim ao ponto de trair só pelo desejo", garante.
Traímos, antes de mais, porque podemos. Em muitas situações, trair é fácil e o risco reduzido. Com mais frequência do que possamos admitir, nem sequer tem consequências. Por isso traímos. É difícil resistir à tentação, sobretudo quando ela está tão perto. A oportunidade é a pior inimiga da fidelidade.
Mas oportunidade e desejo não explicam tudo. A complexa equação da infidelidade não tem solução fácil nem uma explicação universal que responda a todas as situações. Cada caso é um caso e a receita de um adultério inclui, muitas vezes, ingredientes complexos. "É só escolher: paixão verdadeira por outra pessoa; paixão pelo estado de paixão; sexo puro e duro; ajuste de contas; como anti-depressivo ou poção de rejuvenescimento; em 'protesto' contra uma relação enferrujada pela rotina, etc.", enumera Júlio Machado Vaz. E nem sempre o adultério é intencional, refere Mira Kirshenbaum, autora de When Good People Have Affairs: Inside The Hearts & Minds of People in Two Relationships ("Quando as Boas Pessoas Traem: Dentro dos Corações e das Mentes das Pessoas em Duas Relações", numa tradução literal), que elaborou 17 razões que levam as pessoas a trair, entre os quais o acaso. "Por vezes, as pessoas não estão à procura. Basta estar no sítio errado, na altura errada", refere.
Traímos também porque é da nossa natureza, admitirão muitos homens (embora nenhum dos contactados tenha aceitado abrir a sua 'caixa de Pandora' para este trabalho). É a velha desculpa biológica, que a ciência tenta há muito validar. A descoberta recente de um "gene de infidelidade" parece confirmar a hipótese: segundo um estudo de uma universidade nova-iorquina, as pessoas com a mutação genética DRD4 (presente num quarto da população) têm uma maior propensão para trair. A explicação está na forma como a mutação influencia o processamento da dopamina, um neurotransmissor que actua no cérebro influenciando, entre outras, as sensações de prazer e motivação. "É como se, durante a traição, as pessoas recebessem uma descarga de prazer maior", explica Justin Garcia, coordenador do estudo.
A biologia ajuda também a explicar porque é que, no geral, homens e mulheres ainda traem por razões distintas: eles mais por motivações sexuais, elas mais por razões emocionais. Segundo alguns investigadores, as hormonas e os neurotransmissores desempenham um papel na infidelidade e ajudam a perceber as diferenças de género por trás da traição. Neles, faz-se sentir o efeito da testosterona, que eleva a libido - homens com maior propensão para o adultério revelam frequentemente níveis mais elevados desta hormona, associada à agressividade e à competitividade. Nelas, sente-se mais o efeito da ocitocina, a hormona do amor, que, entre outras funções, é responsável pelos sentimentos de apego e vinculação afectiva -, o que explica o facto de as mulheres serem, em regra, mais propensas a estabelecer e manter os vínculos dos relacionamentos.
Para Júlio Machado Vaz, há ainda factores circunstanciais que podem facilitar a infidelidade, como a Internet, que veio não só tornar a traição acessível à distância de um clique como redefinir o próprio conceito. "As novas tecnologias tornaram apaixonante a discussão sobre o que é trair. Já foram decretados divórcios por infidelidade que nunca passou do teclado do computador pessoal...", sublinda o psiquiatra.
O potencial da Internet
A proliferação de redes sociais como o Facebook, salas de chat e sites que promovem encontros, incluindo entre casados, é terreno fértil para reencontrar paixões antigas e fazer novas amizades. O que muitas vezes começa como uma forma de escape, para fintar a rotina da relação, acaba por conduzir à concretização física da traição e arruinar muitos casamentos. Segundo Ana Carvalheira, que conduziu um dos maiores estudos realizados em Portugal sobre relações pessoais e comportamentos sexuais na Internet, mais de metade das pessoas (20% das quais eram casadas ou viviam em união de facto) que participaram em conversas erótico-pornográficas na Internet (vulgo cibersexo) concretizaram o encontro sexual. E desengane-se quem pensa que o fenómeno é coisa de homens. As diferenças entre sexos são quase inexistentes.
"A Internet reúne um conjunto de características que podem ser favorecedoras da infidelidade, nomeadamente o anonimato e a possibilidade de encontrar pessoas com os mesmos gostos, preferências e interesses", refere Carvalheira, que acrescenta ainda o facto de a Web permitir uma forte e rápida percepção da intimidade. "A pessoa sente que é íntima de outro muito rapidamente. Tudo isto favorece o estabelecimento de relações eróticas e amorosas." A psicóloga sublinha o "potencial erótico" da comunicação escrita na Web, que favorece os que escrevem melhor. "Permite ler nas linhas e nas entrelinhas. Para além disso, a outra pessoa é facilmente idealizada. Esse exercício pode ser estimulante à medida que se progride no jogo de sedução", refere.
Será, talvez, um quadro pessimista para os românticos do amor incondicional, eterno e monogâmico. Mas a realidade é o que é: a infidelidade existe. Os estudos não permitem comprovar se está ou não a crescer, mas é certamente hoje muito mais descoberta do que há alguns anos (os mesmos meios tecnológicos que a facilitam acabam, na maior parte dos casos, por a denunciar). Talvez amor e desejo sejam, de facto, coisas diferentes. Talvez, como (se) defendem muitos, a fidelidade emocional seja diferente da fidelidade sexual. Talvez um dia rejeitemos a monogamia, admitindo que ela mais não é que imposição cultural. Talvez abracemos o nosso lado animal e deixemos de resistir aos nossos impulsos. E talvez então homens e mulheres passem a aceitar as regras do jogo, sem se deixar enredar na teia do ciúme. Será então o definitivo triunfo da sociedade da liberdade, do livre arbítrio e do prazer?
Nélson Marques in Revista Única, Expresso
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