Monday, September 5, 2011

Opiniões DN

A perda do perdão

Nos últimos 500 anos o Ocidente viveu o maior ataque cultural da história. Seguindo o magno processo contra a cultura cristã, nas suas três fases, entende-se a situação actual. Primeiro atacou-se a Igreja em nome de Deus. Depois descartou-se a divindade mantendo a moral cristã. Hoje desmantela-se a ética.
A primeira fase seguiu dois passos. Primeiro, com Lutero, Calvino e outros reformadores, agrediu-se a estrutura eclesial conservando o Cristianismo. A fé em Cristo era preciosa, apesar dos perversos eclesiásticos. Depois, através de Hume, Voltaire e outros teístas, o cientifismo deísta rejeitou a doutrina e ritos, acenando à divindade longínqua e apática d'"O Grande Arquitecto" e distorcendo a História para apagar o papel da Igreja.
A segunda fase do ataque dirigiu-se ao transcendente. Recusava-se Deus e a eternidade, pretendendo conservar as regras cristãs de comportamento social. O primeiro passo, de Feuerbach, Comte e outros ateus, quis demonstrar filosoficamente a inexistência formal de Deus na sociedade humanista ideal. O falhanço dos esforços teóricos levou Thomas Huxley, Bertand Russell e outros agnósticos ao ateísmo prático simplesmente desinteressado da questão religiosa.
A fase actual é de ataque frontal à moral cristã. Primeiro, com Saint-Simon, Marx e outros revolucionários, visou-se uma moral exclusivamente humana. Mas, como Nietzsche e Sartre tinham explicado, eliminando a referência metafísica, vivemos "Para lá do Bem e do Mal".
Para compreender os traços essenciais da atitude moral dominante é preciso lembrar o elemento novo e original que o Cristianismo trouxe à civilização há 2000 anos. Aí se situa o núcleo da luta moral da nossa era. Quando Cristo nasceu, a sociedade ocidental já possuía uma estrutura ética sofisticada. Homero, Zoroastro, Sócrates, Zenão, Epicuro e tantos outros tinham estabelecido um sistema complexo de virtudes, regras e comportamentos. No campo estrito da ética, a revelação cristã trouxe apenas um contributo: a misericórdia.
Para Aristóteles e seus contemporâneos, o perdão era uma injustiça inaceitável. A visão cristã do mundo tornou-o indispensável: "todos pecaram e estão privados da glória de Deus. Sem o merecerem, todos são justificados pela Sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus" (Rm 3, 23-24).
Aquilo que a moral de hoje perdeu é a misericórdia. Em jornais, novelas, televisão e cinema encontramos valores e atitudes elevados. Mantêm-se virtudes, guardam-se mandamentos, pululam os exemplos honestos, sensatos, equilibrados. Tolera-se tudo. Só se despreza a caridade cristã.
Existem duas formas de destruir a misericórdia: eliminando o pecado e eliminando o perdão. Estas são precisamente as duas atitudes mais comuns nos dias que correm. Numa enorme quantidade de situações não se vê nada de mal. Naquelas em que se vê, não há desculpa possível. As acções do próximo ou são indiferentes ou intoleráveis. O que nunca são é censuradas e perdoadas. O que nunca se faz é combinar o repúdio do pecado com a compaixão pelo pecador.
O resultado está à vista. A moral oficial, em filmes, romances, séries e telejornais, é uma amálgama de regras, princípios e procedimentos, sem fundamento, coerência ou justificação. Do libertarismo mais acéfalo salta-se ao moralismo totalitário sem lógica ou razão. Aborto e adultério tornavam-se de crimes em direitos, enquanto tabaco e touradas passaram de hábitos a infâmias. Os enredos da moda exaltam os valores pagãos, mágicos, bárbaros, orientais, ocultistas, libertinos, vampiros. Todos, menos cristãos.
Após 500 anos de ataques à Igreja, este é o estado do Ocidente. Qual a situação da fé, com cinco séculos de agressões? Está igual a si mesma. A moral cristã perdura, 100 anos depois de Nietzsche. A fé em Cristo mantém-se, 250 anos depois de Hume. A Igreja Católica permanece, cinco séculos após Lutero. O último meio milénio não foi mais duro para os discípulos de Cristo que os anteriores. Desde o Calvário, a Igreja é atacada. Ressuscitando ao terceiro dia.


João César das Neves


Que se entende por religião?

Quando se fala em religião em sentido estrito, é necessário começar por distinguir um duplo pólo: a religião refere-se ao pólo subjectivo, isto é, ao movimento de transcendimento e entrega confiada a uma realidade sagrada, que é o pólo objectivo - o Sagrado ou Mistério. O religioso diferencia-se, pois, do profano, já que indica o modo concreto e peculiar de assumir a existência na perspectiva do Sagrado. Todas as religiões têm em comum o facto de estarem referidas a um âmbito de realidade que é o Sagrado, e são um sistema organizado de mediações - crenças, práticas, símbolos, lugares... - nas quais o Homem religioso exprime o seu reconhecimento, adoração, entrega à Transcendência enquanto fonte de sentido e salvação.
A religião enquadra-se na experiência radical de dependência, implicando um núcleo com esses dois pólos: um pólo objectivo, constituído pela presença de uma realidade superior de que se depende, e um pólo subjectivo, que consiste na atitude de reconhecimento dessa realidade por parte do ser humano.
Neste contexto, P. Schebesta apresenta uma definição paradigmática: "A religião é o reconhecimento consciente e operante de uma verdade absoluta ('sagrada') da qual o Homem sabe que depende a sua existência." É a partir deste núcleo que se entendem os múltiplos elementos visíveis das religiões: crenças, ritos, instituições, espaços e tempos sagrados, etc., diferentes segundo as culturas e tempos históricos e unidos pelo facto de constituírem mediações religiosas. Na sua variedade, as diferentes definições de religião têm um elemento comum que as caracteriza e autentica: "Apontam para uma entidade meta-empírica determinante da atitude humana como base da estrutura da religião. É o último necessário, que adopta formas e nomes distintos: o santo, o misterioso, o divino, o sobrenatural. Numa palavra, um algo outro que não é coberto inteiramente com os termos que designam as coisas que o homem tem à mão."
Qual é então o critério decisivo para determinar o que é realmente a religião?
Há hoje acordo entre os especialistas no sentido de verem esse critério na referência e relação com uma realidade última salvífica. São fundamentais estes dois elementos: entrada em contacto com a ultimidade, que se apresenta como dando sentido último e salvação.
Ao contrário da ideia corrente, no domínio religioso, Deus não é figura primeira e determinante a não ser para um determinado tipo de religião: a religião monoteísta. É célebre, neste contexto, a afirmação de Leeuw: "Deus é um fruto tardio na história religiosa." O conteúdo central da religião é o absoluto, o transcendente, o abrangente, o numinoso.
Assim, para os fenomenólogos da religião, como J. Martín Velasco, por exemplo, o homem religioso é aquele que assume uma determinada atitude face ao Sagrado, entendendo-se por Sagrado aquele âmbito de realidade que se traduz por termos como "o invisível", "a ultimidade", "a verdadeira fonte do valor e sentido últimos", "a realidade autêntica". A religião não é em primeiro lugar ordo ad Deum (relação com Deus), mas ordo ad Sanctum (relação com o Sagrado). Antes da sua configuração como deuses e Deus, o "objecto" da religião é o Sagrado ou o Mistério, que é ao mesmo tempo absolutamente transcendente e radicalmente imanente. O homem religioso faz a experiência do Sagrado ou Mistério enquanto Presença originante e doadora de toda a realidade. É Presença enquanto Transcendência radical no centro da realidade e da pessoa e, assim, Imanência, isto é, Presença mais íntima à realidade e à pessoa do que a sua própria intimidade.
Para o homem religioso, a realidade não se esgota na sua imediatidade empírica: para a sua compreensão adequada, a realidade mesma aparece-lhe como incluindo uma Presença que não se vê em si mesma, mas implicada no que se vê. Mediante certas características - a contingência radical, a morte e o protesto contra ela, a exigência de sentido -, a própria realidade se mostra implicando essa Presença sagrada, divina, como seu fundamento e sentido últimos.


Anselmo Borges


O que é que o Facebook deve ao 11 de Setembro?

A China saltar de sexta economia para segunda? O Facebook? A Argélia substituir o Sudão como maior país africano? O planeta contar mais 800 milhões de habitantes. Afinal qual foi a maior mudança no mundo na década que passou desde o 11 de Setembro de 2001? Já agora, Plutão ter deixado de ser um planeta, é uma mudança quê? Universal? E alguma delas aconteceu por causa do atentado contra as Torres Gémeas?
Morreram três mil pessoas no mais espectacular ataque terrorista, com o embate do segundo avião no arranha-céus nova-iorquino a ser transmitido em directo. Foi mais gente do que em Pearl Harbor e por isso se adivinhou que os Estados Unidos, feridos de novo em casa, seriam brutais a retaliar. Os talibãs foram derrubados no Afeganistão em três meses, mas Ben Laden tardou nove anos a ser abatido. Pelo meio, a simpatia pela "Guerra ao Terror" declarada por Bush teve altos e baixos. No dia seguinte, o Le Monde garantia sermos "todos americanos", enquanto em Teerão se fazia uma vigília.
Mas a invasão do Iraque, as torturas de Guantánamo e os erros dos drones no Afeganistão e no Paquistão deram argumentos a quem queria ver no contra-ataque a arrogância da superpotência humilhada. Sobretudo a Al-Qaeda apostava no choque das civilizações, tese de um americano que deu jeito aos profetas do retorno ao século VII.
Só a eleição de Obama devolveria crédito aos Estados Unidos, afinal algo deve significar trocar o cowboy pelo filho de um imigrante queniano com Hussein como nome do meio. Ah! E um negro na Casa Branca é mesmo uma das novidades da década.
Assim, os anos 2001-2011 só confirmaram tendências: China, Índia e Brasil pesam cada vez mais, enquanto a crise financeira ressaltou as fragilidades dos Estados Unidos e da União Europeia, que ainda produzem metade da riqueza global. O Facebook é a moda, mas a Internet já antes se tinha imposto, e se o iPad veio para ficar, a era dos gadgets tem mais de dez anos. Quanto à recente "Primavera Árabe", associá-la à "Guerra ao Terror" é abusivo. O único ditador árabe que os americanos derrubaram foi Saddam. Ben Ali, Mubarak e Kadhafi até eram vistos como úteis no combate à Al-Qaeda.
A América ainda domina, mesmo que seja obrigada a pedir boleia aos russos para ir ao espaço, e quem agora puxe pela economia seja a China. O islão passou a ser a religião com mais fiéis, mas poucos deles choraram Ben Laden, e como se viu este ano na Noruega há outro tipo de fanáticos. Novos países desde 2001 só Timor, o Kosovo e o Sudão do Sul. Muito pouco se pensarmos nas alterações tremendas da década anterior.
Bem, antes do terror da Al-Qaeda ainda se ia para um aeroporto com uma garrafa de água na bagagem de mão. Se além de mudar o skyline de Nova Iorque foi só isto que Ben Laden conseguiu, talvez tenha falhado o alvo. Continuamos a voar. Sem medo.


Leonídio Paulo Ferreira


O futuro recente

Depois de passar as primeiras semanas de mandato a analisar com minúcia a crise e o país, o Governo decidiu finalmente pegar o touro pelos cornos e intervir naquilo que realmente preocupa os portugueses. Falo, como é escusadíssimo acrescentar, do futebol, para cuja avaliação Miguel Relvas, o homem que celebrizou a expressão "futuro recente", anunciou não um, nem dois, mas três grupos de trabalho.
O primeiro grupo "diz respeito à protecção das selecções nacionais e dos jogadores mais jovens" e será coordenado por José Luís Arnaut. O segundo grupo visa estudar "eventuais alterações ao regime jurídico e fiscal das sociedades anónimas desportivas" e será coordenado por Paulo Olavo Cunha. O terceiro grupo existe naturalmente para ponderar "a profissionalização ou não dos árbitros" e será coordenado por um senhor que é professor de Direito em Coimbra. Suponho, e devo supor bem, que cada coordenador terá sob a sua competente alçada uma razoável quantidade de subcoordenadores, eminências pardas, assessores, adjuntos, ajudantes, sombrinhas e demais cargos de que o Estado não abdica sempre que se atira de cabeça para a resolução das grandes questões do nosso tempo. Reconforta notar que a atenção dos senhores que mandam em nós não se esgota na puerilidade da macroeconomia e que os apelos neoliberais à redução da despesa pública não influenciam indivíduos responsáveis. De que modo uma sociedade que se pretende digna e evoluída poderia deixar desprotegidos os jogadores imberbes e as selecções? Ou ignorar a legislação das SAD? Ou remeter para as calendas o vital tema dos árbitros profissionais? Comparado com tamanhos dramas, o défice é uma brincadeira. Por manifesta sorte, o Governo não brinca e lançou a iniciativa política mais relevante desde que o Bloco de Esquerda, em sede parlamentar, se lembrou de legalizar a adopção por casais homossexuais e o meu vizinho reclamou, em sede de associação recreativa, de uma cerveja com pouca pressão.
Só tenho uma dúvida. Ou é de mim, ou nas televisões, rádios, cafés, restaurantes, transportes públicos, transportes privados, praias e salas de estar os cidadãos nacionais não fazem outra coisa além de debater o futebol, incluindo, imagino, a situação das selecções, dos árbitros e tal? Contas por baixo, há muito que existem cerca de seis milhões de criaturas e dois milhões de grupos de trabalho exclusivamente empenhados na avaliação dos assuntos que o Governo deseja ver avaliados agora. Para cúmulo, avaliam de borla, aliás o melhor preço na construção de um futuro recente e, sem dúvida, risonho.

Quinta-feira, 1 de Setembro
A fúria do açúcar

Não é só o Governo que luta para resolver os dramas pátrios. Cá em baixo, a sociedade civil agiganta-se conforme previu o senhor primeiro-ministro e dá o seu brioso contributo para nos resgatar do abismo. A última novidade prende-se com o empenho de um grupo de alunos do Instituto Politécnico de Tomar, que apresentou à Comissão Parlamentar de Saúde uma petição para diminuir a quantidade de açúcar nos pacotes do mesmo e combater a diabetes. Dado o nível médio dos nossos deputados, não admira que a Comissão leve a petição a sério. Dado o nível médio do nosso ensino, não admira que alunos com habilitações para terem meia dúzia de conhecimentos e idade para terem juízo desgastem as privilegiadas cabeças em missões assim.
Embora ninguém me pague para fornecer aos meninos e às meninas em causa a instrução que os docentes obviamente não lhes fornecem nas aulas, o dever cívico impele-me a iniciá-los em duas ou três verdades essenciais. Em primeiro lugar, os meninos e as meninas fariam melhor em estudar coisas sérias em vez de desperdiçar o tempo deles e a nossa paciência com arremedos de regulamentação social. Os alfabetizados que nos faltam são, frequentemente, os candidatos a tiranetes que nos sobram. Em segundo lugar, os meninos e as meninas fariam melhor em aprender que a saúde dos outros é da conta dos outros. Em matéria de intromissões mal-educadas, o Estado é suficiente. Em terceiro e decisivo lugar, os meninos e as meninas querem reduzir o açúcar que põem no café, nos cereais ou lá no que é que os jovens de hoje consomem? Muito bem. E muito fácil: quando chegarem a metade do pacote, parem de despejá-lo. No fundo, é um método idêntico ao que nos impede de cirandar sem destino até acabar a gasolina no tanque quando pretendemos conduzir apenas dois quilómetros. Ou ao método que me leva a usar uma resma de pacotes nos países que racionaram o açúcar incluído nos ditos: chama-se livre arbítrio e é quase tão doce quanto atormentar o próximo.

Sexta-feira, 2 de Setembro
Em 2012 será o fim do mundo

Dantes era o país que andava a duas velocidades. Agora é o Governo. Uma é a velocidade com que engendra aumentos da receita, outra a velocidade com que anuncia reduções na despesa. A primeira, que atinge os do costume, é fulminante. A segunda, que atingiria quase todos, segue os enredos do anedotário alentejano: vagarosa e a roçar a imobilidade.
A privatização da TAP? Adiada para 2012 ("provavelmente", diz o ministério das Finanças). A venda da RTP? Talvez haja um negócio "parcial" (sic) em 2012 e haverá a redução próxima de algumas horas de emissão nas filiais da Madeira e dos Açores (poupança estimada de uns decisivos vinte e tal milhões). A "racionalização" da Caixa Geral de Depósitos? Lá para 2012 e dependendo de circunstâncias diversas (ao contrário do agravamento fiscal, estas coisas exigem ponderação). A reforma autárquica? Fala-se da fusão de freguesias e de "cortes" no número das vereações igualmente em 2012 ou, diz Miguel Relvas, após um "longo caminho de debate" (dado que não se pretende assustar ninguém, a extinção de municípios imposta pela "troika" foi vítima de sumiço). Diminuição da taxa social única? Gradual e a começar em 2012 (ou 2013). A limpeza das incontáveis falcatruas que usurpam o estatuto das fundações? As falcatruas terão de responder a um questionário de modo a provar a sua "viabilidade" (cujos resultados, decerto assaz "viáveis", merecerão análise no final de um ano que me dispenso de nomear).
A lista preencheria três páginas do DN. Fico-me por aqui, na convicção de que, em matéria de poupança, o Governo também ficará. Salvar o país seria bonito, mas salvar a pele é fundamental.

Sábado, 3 de Setembro
Toda a riqueza será castigada

"Tozé" Seguro, que me garantem ser o novo chefe do PS, justifica em pleno o cargo e, sem indícios de vergonha, passeia por aí o ar compungido natural do socialismo. Na prática, não se contenta com a desvairada ofensiva fiscal do Governo e exige que se vá um bocadinho além. Há dias, deu-lhe para reivindicar um imposto extra de 3,5% sobre as empresas cujos lucros atinjam os dois milhões de euros anuais. Embora a discussão (sem contraditório) das últimas semanas em volta do saque aos "ricos" nos torne um caso peculiar, a obsessão em castigar aquilo que funciona em benefício da ruína estatal não nasceu ontem nem nasceu aqui. Marx declarou o lucro um valor a abater e, uma ocasião, o saudoso Nehru exigiu ao maior industrial da jovem Índia que não pronunciasse na sua presença essa "palavra suja".
Compreensivelmente, o carácter obsceno da palavra é sobretudo sentido por gente que nunca contribuiu para a sua tradução real. Em décadas de deambulações partidárias, "Tozé" Seguro jamais realizou algo que vagamente se assemelhasse a uma actividade lucrativa. Esta distância face ao trabalho produtivo é vital para que um indivíduo se sinta à vontade com o dinheiro dos outros. Saber o que custa ganhá-lo não é somente um rifão popular: é uma regra indispensável ao respeito que o esforço ou a sorte alheios deveriam suscitar.
Por cá, curiosamente, a regra é a inversa e obedece a três axiomas: todos os portugueses que ganhem acima de um motorista governamental, por exemplo, são ricos; todos os ricos são corruptos; nenhum rico paga impostos. Não é necessário divagar acerca das consequências deste interessante quadro conceptual, desde o buraco a que chegámos à arrepiante normalidade que acolhe os delírios de "Tozé" Seguro. E de quem calha: Cavaco Silva apela diariamente a sacrifícios diversos e o Governo tortura mais do que diariamente as empresas e a classe média, perdão, os ricos com impostos enquanto mal belisca a despesa da casa. Perante isto, "Tozé" Seguro acusa o PSD de "assalto violento" às "funções sociais do Estado". O que surpreende não é a probabilidade de entrarmos em colapso: é o facto de ainda não termos entrado.


Alberto Gonçalves


As crispações identitárias

Sem ignorar a utilização confusa dos conceitos do globalismo, mundialização e identidades, o primeiro visando sobretudo exprimir uma interdependência em estruturação, o segundo cobrindo um consumismo que aproxima as aparências culturais, e o terceiro afirmando o mapa das raízes dos povos, sem estes não é fácil construir um futuro inovador de resposta aos avanços científicos e técnicos da conjuntura. É, todavia, nesta última faceta que cresce a evidência de quanto é difícil e grave de consequências a falha de harmonização das três vertentes.
A crise mundial das finanças e da economia, sobretudo a evidência de que se adensa e alarga a geografia da pobreza, sem grande capacidade científica e técnica demonstrada para combater os efeitos do desastre, está a contribuir para que a crispação identitária tome a dianteira das reacções contra os efeitos sofridos, quer por falhas próprias, quer por consequências das alheias, atingindo não apenas as fortes dependências da globalização sem plano de regência, mas também as atitudes estratégicas das identidades que a história foi moldando e que adoptaram planos racionalizados de convergência e cooperação, como acontece com a União Europeia. Talvez a reacção tenha especial dependência dos efeitos nefastos atribuídos com fundamento à globalização sem governança, o facto de alguns Estados, que tinham consolidado a sua definição antes das guerras mundiais, estarem a enfrentar fracturas preocupantes, como são designadamente os casos de Espanha, da Bélgica, da Inglaterra, e mesmo com sinais na França da primavera dos povos. Com diferenças que não afectam o perfil dessas afirmações identitárias, analistas destacam agora nacionalismos visando a independência soberana, como foi o caso do Kosovo, dos curdos, dos infelizes palestinos, sem que a pobreza, ou a falha de história da independência procurada, lhes consinta identificar míticas origens que abonariam uma legitimidade com raízes. A semente da revolta fornece um impulso para o recurso à violência em defesa da unidade, se existente, em perigo. Tudo factos que pareciam longe de afectar o movimento de unidade europeia, suficientemente vacinada pelos efeitos das guerras mundiais e pelos anos da Guerra Fria, para não regressar às crispações nacionalistas, de novo tendo em vista as relações saudáveis com os vizinhos de geografia, de cultura e de história política, e não as agressões vindas do exterior, necessariamente inovadoras quanto aos meios e com efeitos devastadores. Nos países europeus, sobretudo os que se imaginam ricos, e também nos EUA, que começam a sentir que a debilidade os pode atingir, as variações de ânimo nos órgãos de soberania, as oscilações do eleitorado, o afloramento de forças organizadas para intervir, o horror da Noruega, são sinais inequívocos de que a crispação identitária, com perfil nacionalista acentuado, está a inscrever-se visivelmente no panorama das definições políticas, acreditando em futuros mais aceitáveis do que o presente, de carências, dúvidas e perplexidades.
Uma reflexão responsável, que tenha os sinais por avisos a ter em conta, parece exigível aos responsáveis no sentido de evitar que, aos erros que conduziram à angustiante situação presente, sobretudo dos povos europeus já abrangidos pela fronteira da pobreza, venham somar-se os erros derivados de visões que imaginam que um regresso ao modelo passado de soberania absoluta será um remédio eficaz. Pode ser o resultado da falta de saber e imaginação para definir a maneira nova de, em cooperação, salvaguardar a identidade e a igual dignidade num futuro a construir, para o que infelizmente não abundam lideranças manifestas, confiáveis e eficazes. Mas se a defesa das raízes, o aceitar o passado sem benefício de inventário, são condições necessárias para redefinir um futuro de progresso em paz, tudo necessariamente tem de evoluir, num mundo que mudou fisicamente, politicamente, cientificamente, culturalmente: não tem fundamento a convicção de que o passado tem um caminho de regresso. No caso europeu, o regresso ao passado seria a renúncia definitiva a ter futuro.


Adriano Moreira

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